Biblioteconomia não é subcampo: é ciência, é prática, é história
Por Leonardo Assis, doutor em Ciência da Informação pela ECA-USP | jornal da USP*
Nos últimos anos, temos observado uma tendência que, sob o pretexto de modernização, ameaça a própria existência simbólica da Biblioteconomia. A mudança do nome do curso da USP para Biblioteconomia e Ciência da Informação, aprovada recentemente pelo Conselho Estadual de Educação, a pedido do próprio departamento, apresentada como um avanço, carrega consigo um risco silencioso, porém profundo: o apagamento gradual da biblioteconomia enquanto campo autônomo, com práticas, epistemologia e história próprias.
A justificativa institucional é que o novo nome amplia as possibilidades de atuação e dialoga com o “campo científico da informação”. Mas o que é, afinal, a ciência da informação? Um conceito abstrato, uma ficção teórica difusa, muitas vezes dissociada da realidade concreta das bibliotecas. Usá-la como sobrenome da Biblioteconomia pode parecer um adorno técnico, mas revela uma tentativa de “cientificizar” um campo que sempre foi ciência – da informação, da cultura, da mediação e da memória.
Se a modernização justifica o renomear, por que a Museologia não se tornou “Museologia e Ciência do Patrimônio”? Por que a Pedagogia não foi rebatizada como “Educação e Ciência da Aprendizagem”? A Biblioteconomia, por sua história de constante atualização, não precisa se esconder sob o rótulo de outro campo para demonstrar sua relevância.
E as perguntas que nos provocam se multiplicam: Vamos agora mudar os nomes das bibliotecas para centros de ciência da informação? Teremos Conselhos Regionais de Ciência da Informação no lugar dos CRBs? As escolas vão substituir a biblioteca escolar por um espaço de ciência da informação? As universidades criarão centros de ciência da informação universitária, apagando as bibliotecas que sustentam a pesquisa? Teremos um Sistema Nacional e Estaduais de Ciência da Informação pública?
Esse caminho de renomear tudo com base em uma abstração diz mais sobre a fraqueza de certos argumentos do que sobre a força da Biblioteconomia. A troca de nome revela a rendição de parte da academia ao discurso de que só é relevante aquilo que carrega a palavra “ciência” no título – mesmo que isso signifique apagar as bases concretas da nossa atuação.
A decisão ignora até mesmo o espírito do Decreto de Criação da Universidade de São Paulo, de 1934. Nele, estão expressos os fins da Universidade pública paulista:
“Art. 2º – São fins da Universidade: a) promover, pela pesquisa, o progresso da ciência; b) transmitir, pelo ensino, conhecimentos que enriqueçam ou desenvolvam o espírito, ou sejam úteis à vida; c) formar especialistas em todos os ramos de cultura, e técnicos e profissionais em todas as profissões de base científica ou artística; d) realizar a obra social de vulgarização das ciências, das letras e das artes […]”.
O projeto fundacional da USP prevê claramente a formação de especialistas, não de profissionais genéricos ou abstratos. A Universidade deve preparar profissionais que compreendam segmentos específicos de atuação – com suas práticas, seus públicos e seus contextos próprios. Não se trata de formar profissionais do vazio, sob guarda-chuvas epistemológicos que pouco dizem sobre as necessidades concretas da sociedade.
Ademais, a associação “científica” feita para valorizar a Biblioteconomia desconhece até mesmo a fundação do curso, em 1966, junto com a “Escola de Comunicações Culturais”. O curso de Biblioteconomia instalado na futura Escola de Comunicações nasce com a proposta:
“Os conceitos de biblioteca e de documentação evoluíram muito, sendo hoje considerados centros ativos da cultura, que não se preocupam somente em guardar publicações bem classificadas e catalogadas, mas em desenvolver intensa ação cultural para o meio em que atuam” (RUSP nº 8185, f.1.116, 1965).
Ou seja, o caráter do curso estava atrelado à cultura, ao desenvolvimento social e à busca por respostas para problemas concretos. Não se tratava apenas de lidar com questões técnicas, científicas ou mercadológicas, como se faz hoje em mudanças que muitas vezes desconsideram os contextos institucionais de origem e o cumprimento do papel social das bibliotecas.
O risco é claro: daqui a alguns anos, a palavra “biblioteconomia” pode estar relegada aos livros de memórias, substituída por um termo genérico, fluido, que não nomeia práticas, sujeitos nem lugares. A perda não será apenas semântica – será simbólica, política e social.
A biblioteca, assim como o museu e o arquivo, é instituição com suas peculiaridades, com suas formas de trabalho únicas e com suas dinâmicas para os diferentes públicos, segmentos consolidados – e não um guarda-chuva teórico abstrato que não indica de fato quais ações reais e práticas se consolidam na sociedade. Essa instituição, a biblioteca, com suas características únicas, desenvolveu ao longo do tempo formas, trabalhos, processos e literatura capazes de justificar sua existência de maneira real. Negar a existência dessa instituição ou os problemas específicos para os quais ela atua é um erro por parte dos intelectuais – ou daqueles que se dizem responsáveis pela condução dessa área do conhecimento.
Além disso, a desvalorização da área, pela troca ou substituição por outro termo, indica que, de fato, as bibliotecas não têm mais valor em sociedade. Uma guerra perdida.
*Jornal da USP, https://jornal.usp.br/artigos/biblioteconomia-nao-e-subcampo-e-ciencia-e-pratica-e-historia/, 03/04/2025