Tradutores perdem trabalho para IA e fazem transição de carreira para se realocar no mercado

Terceiro episódio da série ‘O trabalho na era da IA’ mostra quais são as áreas mais vulneráveis no mercado da tradução e quais são os nichos com maior oportunidade de crescimento

Por Jayanne Rodrigues | OESP*

O trabalho na era da IA: tradutores enfrentam queda na remuneração e falta de oportunidades na área

Magda Luchesi, de 57 anos, atua há uma década no mercado de tradução no Brasil. Foi com a renda de tradutora que criou seus dois filhos. No entanto, o avanço da inteligência artificial mudou drasticamente a realidade financeira da profissional. Neste ano, perdeu dois contratos fixos, traduziu apenas dois documentos e fez poucas revisões. Desde fevereiro, não consegue serviço na área.

Formada em letras, passou a dar reforço escolar e aulas de português para estrangeiros para fechar as contas do mês. “Com os contratos fixos, conseguia pagar as contas da minha casa e até fazer uma reserva. A minha renda era tranquila. Hoje, há uma desvalorização no setor”, desabafa.

Nos últimos dois anos, a revolução da inteligência artificial vem transformando o mercado de trabalho em todo o mundo. Ferramentas capazes de traduzir textos, revisar documentos e até interpretar contextos culturais passaram a competir diretamente com profissionais humanos. A promessa de produtividade e redução de custos atrai empresas e clientes, mas traz também queda na renda e insegurança para quem vive de algumas profissões.

No terceiro episódio da série O trabalho na era da IA, que o Estadão começou a publicar na segunda-feira, 20, listamos as ameaças e as oportunidades da IA no mercado de tradução e como as mudanças têm sido observadas pelos estudiosos do tema.

Assim como Magda, outros brasileiros que atuam na área têm enfrentado dificuldades para fazer frente à crescente popularização da IA. De 22 tradutores ouvidos pelo Estadão, pelo LinkedIn, 19 relataram queda na demanda em 2024.

Foram feitas perguntas sobre o nicho de atuação, os idiomas com os quais trabalham, a região onde vivem e se haviam perdido oportunidades de trabalho para a IA. Também houve questionamentos sobre as áreas específicas da tradução que registraram eventuais queda da demanda e desde quando isso começou a ocorrer.

Os resultados dão a dimensão do desafio: pelo menos quatro afirmaram estar desempregados, embora não tenham especificado os motivos. Ao todo, 19 relataram redução do volume de trabalho a partir de 2024.

Por outro lado, há sinais de que a IA também pode gerar oportunidades. Dos profissionais ouvidos, 18 disseram incorporar a IA na rotina de trabalho. Consultas, criação de exercícios, pesquisa de termos específicos e jargões de áreas técnicas estão entre os recursos mais utilizados.

Para entender melhor o atual contexto é preciso voltar cinco anos atrás, quando a ferramenta apresentava falhas básicas na compreensão do contexto de palavras-chaves. O quadro mudou radicalmente nos últimos três anos, afirma Anderson Soares, coordenador científico do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás. “A tradução ficou bastante automatizável, mas ainda com limites”, diz.

Para exemplificar, o professor cita um relatório de transferência de um paciente em tratamento especializado. Segundo Soares, a qualidade da resposta da IA pode variar conforme a especialidade médica. Em áreas mais específicas, a máquina ainda apresenta falhas. Por outro lado, quando se trata de condições gerais de saúde, costuma gerar resultados mais satisfatórios.

No lado mais fraco da corda, tradutores que atuam como generalistas em áreas como saúde e engenharia estão sendo mais afetados, aponta.

“Dizer que não vai ter impacto seria mentir para nós mesmos. O desafio é entender os novos usuários que estão acessando uma lógica superficial da tradução”, diz o professor. Ele ressalta que a revisão humana continua essencial em textos com valor legal, crítico ou de negócio.

Profissionais alegam que IA barateia serviços

Formada em letras, com habilitação em português e inglês, Magda Luchesi decidiu empreender em 2015 após anos no mercado formal. Nos primeiros anos como freelancer, conseguiu bons contratos. Ela traduzia manuais de instruções, contratos, e-books e relatórios técnicos.

Até 2018, Magda estima que o trabalho era bem remunerado e com grande volume. “Antes pagava minhas contas e ainda sobrava para investir. Dava até para programar viagem. Comecei a perder contratos em 2018. Primeiro foi um, depois outro. Eram minhas galinhas dos ovos de ouro”, aponta.

Com a queda na demanda por traduções, a profissional decidiu voltar como CLT no setor de comunicação em 2019. Em 2024, após ser demitida, a tradutora realizou apenas duas traduções entre outubro do ano passado e fevereiro deste ano. Além da redução de oportunidades, a profissional também reclama da desvalorização.

“É o que mais me preocupa no momento”, diz. “Acabei de entregar um trabalho que a empresa me pagou R$ 300. Em 2018, por exemplo, custaria em torno de R$ 500.″ Nos últimos meses, começou a se candidatar para vagas como assistente e auxiliar.

O caso reflete uma redução global tanto na oferta de trabalho para freelancers quanto na remuneração.

Isso porque a IA generativa tem forçado tradutores a migrarem para função de pós-edição, segundo Tiago Belotte, diretor de educação da Imana, empresa de inteligência artificial.

“O que os tradutores recebem pela pós-edição costuma ser menor do que eles receberiam por uma tradução. Os profissionais relatam que o trabalho cognitivo envolvido para uma pós-edição é o mesmo que o de uma tradução. Ou seja, é a mesma carga de trabalho por um rendimento menor”, avalia Belotte.

Outro fator que influencia a baixa remuneração é o custo para as empresas. Segundo relatório deste ano da Smartling, empresa especializada em soluções de tradução com suporte de IA, a tradução humana, que antes custava cerca de US$ 0,20/palavra, agora pode sair por até US$ 0,09 com IA e memória de tradução.

No Brasil, a tradução de um idioma estrangeiro para o português custa R$ 0,45/palavra. Já uma lauda padrão (cerca de 2.100 caracteres com espaços) tem preço médio de R$ 43,02. As informações são do Sindicato Nacional dos Tradutores (Sintra).

‘Estamos perdendo clientes’

A tradutora e empreendedora Karla Tamorazzi, de 39 anos, também sente os efeitos da desvalorização do mercado. Ela é fundadora da Speñglish, empresa com oito anos de atuação, especializada em tradução com edição e consultoria de linguagem, composta por cinco funcionários.

A profissional avalia que a popularização da IA mudou a percepção do cliente.

“Estamos perdendo clientes nos últimos dois anos. Muitos chegam com projetos que passaram por uma IA e falam: ‘Olha, só precisa de ajustes finais’. Mas nem sempre são apenas ajustes finais porque a IA não substitui o olhar humano. A linguagem é viva, é humana”, diz Karla.

Se, por um lado, o volume de traduções diminuiu, por outro, a demanda por revisões aumentou. No entanto, o tempo dedicado à revisão costuma ser maior, mesmo com o valor cobrado sendo metade do que se aplica à tradução.

“Precisamos conferir tudo novamente. O tempo gasto para identificar o que a IA acertou ou errou pode ser mais longo. Quando pegamos um projeto do zero, temos mais confiança: vi o original, comparei e traduzi”, explica.

Embora a consultoria tenha tido um crescimento anual nos anos de 2023 e 2024, os últimos três meses do ano passado apresentaram resultados abaixo do esperado se comparado a “um mês normal”, revela a empreendedora, que atribuiu a queda no faturamento aos efeitos da IA.

Para garantir a sustentabilidade do negócio, adaptou a estratégia: passou a enfatizar a presença de jornalistas na equipe e a edição humana. A empresa também ampliou a cartela de serviços ao incorporar tradução simultânea, consultoria de linguagem e relações internacionais.

Transição de carreira

Para aqueles que não tiveram sucesso nas estratégias adotadas para acompanhar as mudanças do mercado, a solução foi mudar de área. A carreira de Gabriela Stampacchio, de 32 anos, na dublagem e legendagem ia bem até 2023, quando as oportunidades começaram a secar e alguns estúdios passaram a substituir o trabalho humano por ferramentas automatizadas.

“Nós, tradutores, falamos que é uma economia burra. O tradutor custa menos do que a hora do diretor de dublagem. Ter um texto mal traduzido faz com que o diretor precise ajustar. Uma sessão de três horas passa a durar seis. Sai mais caro pagar essas horas extras do diretor do que investir em um tradutor que entrega o texto redondo”, defende.

A tendência tem sido acompanhada por uma redução nos valores pagos por minuto de tradução. Gabriela revela que, antes, recebia em média R$ 15 por minuto de tradução; agora, alguns estúdios oferecem apenas R$ 5, com outros pagando até R$ 8.

Em 2024, ela traduziu apenas duas produções pontuais relacionadas a conteúdos para o YouTube. Desde então, só conseguiu pagar as contas com a reserva feita até 2023.

“Se ganhei R$ 100 com tradução ao longo do ano foi muito.” Há quatro meses conseguiu frilas em um novo estúdio, mas com valores reduzidos. “Estou ganhando metade do que ganhava antes.”

Para se adaptar, Gabriela tem buscado novas fontes de renda. Como atriz, passou a atuar em eventos corporativos e feiras, além de reativar seu cadastro como motorista de aplicativo, atividade que não exercia desde 2017.

Outra profissional que também decidiu migrar de área foi a tradutora Tatyana Guedes, de 47 anos. Nos últimos dois anos, ela perdeu cerca de dois terços da sua renda mensal após a agência com quem tinha exclusividade desde 2015 romper o contrato com a justificativa de que “a demanda caiu muito”.

Com o fim do frila, Guedes começou uma transição para o nicho de tradução literária e não ficção, setor menos afetado no campo da tradução, segundo especialistas.

Enquanto não consegue emprego para a área que planeja migrar, a tradutora considera alternativas como dar aulas e realizar oficinas de tradução de poema e criar um clube do livro em seu Instagram.

“É a sensação de uma colcha de retalhos. Uma coisa entrando aqui, outras ali. Trabalho há 28 anos com tradução e é a primeira vez que vejo um impacto tão grande”, lamenta Guedes.

Tradução literária é o nicho menos afetado

O especialista Tiago Belotte aponta que a IA afeta mais as traduções repetitivas, de alto volume e baixo valor agregado, a exemplo de relatórios internos, comunicados simples ou materiais que antes não eram traduzidos pelas empresas por falta de verba.

Já as áreas que envolvem criatividade, nuances culturais ou linguagem técnica altamente especializada (jurídica, médica, financeira) são menos afetadas e estão até mais valorizadas pós-boom da IA. É o caso do nicho da literatura.

Rodrigo Bravo, de 33 anos, atua há 16 anos no setor de tradução. Ele é editor do Clube de Literatura Clássica, tradutor de mais de 14 livros em 11 idiomas e professor da ESPM, onde ensina tradução de campanhas publicitárias.

O editor relata que a IA, ainda limitada para compreender nuances emocionais, subjetividades e ritmo textual, tem sido uma ferramenta útil para adiantar etapas mecânicas do trabalho. No dia a dia, costuma usar para verificar sintaxe, fazer consultas rápidas e elaborar notas de rodapé.

Na literatura, Bravo conta que o tempo para traduzir um livro varia bastante. A tradução de Hamlet, de Shakespeare, por exemplo, demandou seis meses de dedicação. Em A Arte da Retórica, de Aristóteles, o escritor levou um ano para concluir a tradução.

Para escrever uma nota de rodapé de quatro linhas, Bravo diz que gastava cerca de 20 minutos. Com a IA, o tempo foi reduzido para menos de 10 minutos. “Só verifico se a informação bate e altero o texto de acordo com o meu estilo”, diz.

“O que levei um ano para fazer, poderia ter feito em seis meses, ganhado o mesmo valor e ainda teria aproveitado os outros seis meses para outro projeto. Vejo a IA como uma grande oportunidade”, diz.

Bravo também usa o recurso tecnológico para montar aulas, pensar em temas em alta para discutir com os estudantes e usar como ferramenta pedagógica na sala. Na ESPM, ele desenvolveu um prompt de IA que atua como um professor de português ao corrigir frases e explicar aspectos da língua para refugiados afegãos.

Oportunidades no mercado da tradução dependem de adaptação e de certas habilidades

Ainda que não haja pesquisas recentes no Brasil sobre o assunto, dados do Census Bureau, agência governamental dos EUA, mostra que o número de pessoas empregadas como intérpretes e tradutores cresceu 11% entre 2020 e 2023.

O especialista Tiago Belotte afirma que o crescimento está atrelado à globalização e ao aumento do volume de traduções em geral. A IA representa tanto uma ameaça quanto uma oportunidade para os profissionais da tradução, afirma.

Para se adaptar ao avanço da máquina, os profissionais tradutores precisam, antes de tudo, se alfabetizar em IA, sugere Tiago. “Isso significa compreender como funciona, identificar os limites, potenciais e entender os riscos envolvidos.”

Uma das principais oportunidades está na área de campanhas publicitárias que exigem adaptação cultural e regional. Outro campo promissor é o da hiperespecialização, no qual tradutores se aprofundam em nichos técnicos que a IA ainda não consegue lidar.

A presidente do Sintra, Beatriz Dinucci, reconhece que a IA afetou algumas áreas do mercado, a exemplo de traduções empresariais simples e textos básicos de sites.

No entanto, pondera que profissionais especializados não sofrerão um impacto significativo. “Se você é um tradutor profissional, vai ser menos afetado. Por exemplo, na tradução jurídica, que grande escritório vai confiar no ChatGPT?”, provoca.

Na perspectiva do sindicato, os nichos de tradução jurídica, interpretação médica e literatura exigem nuances que a IA não consegue replicar.

A presidente do Sintra também menciona a importância da formação contínua e destaca que profissionais que atuavam na tradução apenas como um bico devem encontrar mais dificuldades nos próximos anos.

*Estado de São Paulo, https://www.estadao.com.br/economia/sua-carreira/tradutores-perdem-trabalho-para-ia-e-fazem-transicao-de-carreira-para-se-realocar-no-mercado/, 22/10/2025

AN
× clique aqui e fale conosco pelo whatsapp