Má qualidade da formação desvaloriza o engenheiro
entrevista: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO – Ex-aluno e professor da Escola Politécnica da USP, preside a Associação dos Engenheiros Politécnicos
Para ele, crise da profissão precisa ser revertida para que País possa continuar a crescer
RENATA CAFARDO| OESP*
Aperda da qualidade na formação de engenheiros no País acabou resultando na desvalorização da profissão, que já teve status inquestionável na sociedade. Para o presidente da Associação dos Engenheiros Politécnicos, Dario Gramorelli, essa crise – agravada pela falta de interesse dos jovens na área – precisa ser revertida rapidamente para que o País possa continuar a crescer. Gramorelli questiona a formação de engenheiros no País de forma não presencial, que cresceu muito nos últimos anos, ao mesmo tempo em que se reduz a quantidade de jovens que buscam a área. O número de engenheiros que se formam em EAD desde 2015 subiu quase 2.000% no País, segundo dados do Mapa do Ensino Superior do Instituto Semesp. No mês passado, o governo federal aprovou novas regras para a modalidade que permitem só 40% de presencialidade nas Engenharias; outras áreas, como Direito e Psicologia, precisam ter 70%. E Medicina, 100%.
Como o senhor explicaria a importância da Engenharia para o desenvolvimento do País?
Hoje a tecnologia é uma coluna fundamental para o desenvolvimento de um país. Os principais países que se desenvolveram estavam todos fundamentados na tecnologia. E engenheiros usando essa tecnologia. Sempre falamos que a Engenharia, como qualquer outra área que produz, é uma área de meio. Ela não é um fim em si mesma. O agronegócio é um bom exemplo. Ele se desenvolveu muito, é um elemento econômico para o desenvolvimento do País, e isso aconteceu porque houve uma incidência muito grande de tecnologia. Isso vai desde o momento em que se produz a semente até quando se embarca no navio. No uso de drones na agricultura, ou nas colheitadeiras automáticas e gerenciadas por satélite, tudo isso é engenharia. Engenharia no sentido mais puro possível. Você tem engenharia mecânica, eletrônica, de sistemas, de computação, de telecomunicações, materiais. É aquilo que deverá ser aplicado pelo aluno que passou, no mínimo, 5 anos estudando. Se não entendermos que precisamos seguir esse caminho, continuaremos sendo um país de segunda classe.
Como vê a menor procura por cursos de Engenharia?
Estamos criando um ambiente educacional muito ruim no País. É um processo que vem se arrastando por anos. Basta observar os índices educacionais do Brasil em comparação com os de outros países. Nós estamos lá no 80.º, 70.º (nos rankings de avaliações internacionais) e quando a nossa economia está entre as 10. Tem alguma coisa errada com isso. A educação nunca foi prioridade e é só com educação que a gente transforma o País.
O senhor acredita que os alunos hoje, por causa do déficit em aprendizagem de Matemática, evitam profissões como Engenharia?
A Matemática, a Física, a Ciência de uma maneira geral na formação média, ela espanta. Mas também infelizmente vemos no mundo atual pessoas com aparente sucesso, com dinheiro e visibilidade, que acabam iludindo principalmente jovens que estão no momento de tomar decisões e fazer escolhas. De milhões que tentam, só alguns influenciadores têm sucesso, mesmo fazendo coisas sem qualidade, mas acabam criando a ilusão da facilidade. O curso de Engenharia não é fácil. É preciso estudar, gostar de Matemática, de Física e de suas aplicações. Logo no ensino médio, já existe a ilusão da facilidade. Por que vou me esforçar para aprender bem isso aqui? Por que vou me esforçar para querer ser engenheiro, se posso fazer um vídeo que viralize e ganhe 100 mil visualizações, rendendo um bom dinheiro no fim do mês e parecendo que encontrei a solução da minha vida?
E como mudar isso?
Nós precisamos mudar esses conceitos. Como? Não é fácil. Isso é muito comum se falar em Engenharia: para todo problema complexo existe uma resposta simples que não funciona. Esse é um problema muito complexo. Tem a ver com políticas públicas, com facilitações que a própria estrutura escolar tem de providenciar, e também com um comprometimento social
“Imagina fazer um curso de engenharia de minas, metalurgia, civil, virtualmente? Elas mexem muito com aspectos físicos da realidade. E precisamos estar conectados com laboratórios, com institutos de pesquisa e com atividades extracurriculares”
“Para mim, 40% de presencial é pouco. Eu acho que deveria ser 70% ou algo assim. Eu não começaria por baixo, eu começaria por cima”
O senhor acha que a profissão de engenheiro perdeu o status do passado?
No passado, era uma referência porque era difícil ser engenheiro. Hoje em dia, existem escolas que lançam mão de qualquer meio para fazer com que você passe pela porta e faça o curso de Engenharia. Então, é evidente que houve perda de qualidade e de essência na profissão, e esse é um aspecto duríssimo de se falar, mas a perda de valor profissional acabou se refletindo no reconhecimento público. Mas temos de valorizar a Engenharia, porque temos muita Engenharia boa. Você vê a Petrobras, Embraer, terceira empresa mundial em produção de aviões, Vale, líder no mercado de mineração. Isso foi feito, em grande parte, por brasileiros, engenheiros. O engenheiro EAD, se você pedir para ele fazer um cálculo, não vai saber. De repente, as empresas multinacionais passaram a fazer Engenharia fora do Brasil e encerraram essas engenharias aqui. Essas pessoas se tornaram motoristas de Uber. Eu conheço gente com mestrado em Engenharia que hoje é motorista de Uber. Hoje até os comediantes de stand-up usam isso de uma maneira jocosa. Há alguns anos, era o engenheiro que virava suco; agora, é o engenheiro que vira Uber. É óbvio que isso acaba desvalorizando a profissão de engenheiro no subconsciente coletivo. Mas isso precisa mudar. Nós somos essenciais. O País precisa de uma engenharia forte, de uma formação consistente e de uma verdadeira Engenharia brasileira, que represente o Brasil e aplique esforços aqui.
Falta emprego para engenheiro?
Falta engenheiro bom e falta emprego, são duas coisas distintas. Temos aí um esforço enorme da sociedade para formar engenheiros, que, quando colocados no mercado, não têm oportunidades. Esses engenheiros que vão atuar em outras áreas se dão bem porque a formação é muito sólida em muitos aspectos, como o desenvolvimento do pensamento analítico, uma boa base de Matemática. O mercado adora isso. Uma grande parte vai se dar bem, mas não serão mais engenheiros no sentido estrito. Então nós temos um problema: temos de manter um caldo contínuo de oportunidades no País para as pessoas se colocarem. No Brasil, temos 10 engenheiros para cada 100 mil habitantes, enquanto na Alemanha são 40.
O que o senhor achou do novo decreto presidencial que permite Engenharia com 40% de aulas presenciais apenas?
Imagina fazer um curso de engenharia de minas, metalurgia, civil, virtualmente? Elas mexem muito com aspectos físicos da realidade. E precisamos estar conectados com laboratórios, com institutos de pesquisa e com atividades extracurriculares. Isso só acontece quando temos a presença física, não tem outro jeito. Essa condição de presença também não é só uma questão técnica, é de convivência. Falamos tanto em soft skills, como podemos propiciar interação, trabalho em equipe, tolerância, liderança, senã otivermos contato com aspessoas? Isso não vai acontecer remotamente. Eu imagino, inclusive, que poderias e rum fator competitivo para as escolas sérias: “Nossas aulas são 80% presenciais, você é obrigado a estar aqui, você tem de participar”. Lógico, tem uma parte do estudo que não precisa estar lá para estudar, isso em qualquer área. Mas o EAD foi criado como um remendo, pela incapacidade que temos de prover recursos adequados, porque instalação, laboratório e professores custam dinheiro. Se o aspecto econômico é muito mais relevante do que o da formação, agente cai nesses caminhos. Par amim ,40% de presencial é pouco. Eu acho que deveria ser 70% ou algo assim. Eu não começaria por baixo, eu começaria por cima: 80% está muito? Vamos diminuir porque já é suficiente.
*Estado de São Paulo, https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo, 02/07/2025, pg. A20